terça-feira, 20 de outubro de 2009

Eu sei, mas não devia...

Eu sei que a gente se acostuma.
Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor.
E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.
E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.
E porque não abre as cortinas logo se acostuma a acender cedo a luz.
E a medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.
A tomar o café correndo porque está atrasado.
A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem.
A comer sanduíche porque não dá para almoçar.
A sair do trabalho porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita.
E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.
E a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagará mais.
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma à poluição.
Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.
À luz artificial de ligeiro tremor.
Ao choque que os olhos levam na luz natural.
Às bactérias de água potável.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer.
Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.
Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo.
Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.
Se o trabalho está duro a gente se consola pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta, e que gasta de tanto se acostumar, e se perde de si mesma.

[ Marina Colassanti ]

6 comentários:

  1. Olá...Nilsa,
    Perfeito esse texto!!
    Tem muito haver com nossa realidade!!
    Abraços...

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  2. Nossa, eu tava precisando disso!
    Que bom que gostou do novo blog.. rs ;)
    Beijos

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  3. oias!
    passei por aqui e gostei. Vou segiur.

    Pois é por estar tão acustumada a tudo que de vez enquando gosto de me meter no carro com os meus pais e ir para o campo. Lá a água ainda é potavel sem ter de ser tratada;não há aquecimento central mas lareira; os legumes vêm da quinta ao lado; os carros não são necessários porque a aldeia é pequena; os convites para ir a casa do tio, da tia, do primo são tantos que não dá para ir a todos no mesmo fim-de-semana; os gatos na maioria são selvagens se lhe der de comer comem mas se não der eles caçam, não precisam de mim, por outro lado nada de festas senão tenho logo um arranhão certeiro; as pessoas conhecem-se todas; na rua não cheira a poluição mas sim a terra, a flores, a animais...
    Adoro ir lá! É como se voltasse a por os pés no chão e voltasse a reparar nas coisas boas que este nosso planeta ainda tem. E que a vida não é só trabalhar, estudar, correr de um lado para o outro. É preciso parar! Reflectir, viver!

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  4. Acostumar-se é desculpa. Desculpa pra inovar. ;]

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